terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A Carla e eu

Domingo à noite numa grande superfície nos arredores de Lisboa … na esperança de sermos poucos… e de facto não éramos muitos, mas parecíamos milhares. As minhas escolhas eram muitas, a vontade de escolher é que era pouca, muito pouca. Ainda sem nenhum saco na mão resolvi parar para jantar.
Pasta ou salada? pasta. Tagliatelle mais cinco escolhas, e molho. Carbonara ou cinco queijos? Cinco queijos!
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Sentada numa mesa que se ligava a outras mil cheias de copos e pratos já usados e pessoas carregadas de sacos, dei a primeira garfada quando “ouvi” e depois olhei, a “expressiva” família que tinha como vizinha de mesa.
“Cala-te Carla, já te comprámos as prendas. Esta miúda é mesmo estúpida!”
“ Ó Paulo (diz, a que presumo ser a mãe da Carla… porque são do mesmo tamanho e largura, e porque têm o mesmo corte de cabelo e nuances da mesma cor… apesar de uma não ter mais que doze anos e a outra aparentar uns quarenta e tal…) não fales assim, ela é estúpida mas já percebeu que não vai ter mais porcarias nenhumas!”
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Depois desta entrada triunfante perdi a postura e acho que ao abrir a boca de espanto me babei… Compus-me, e confesso que atrasei propositadamente a minha refeição para ficar até ao final do jantar (quase de Natal) da família da Carla.
Levantaram-se, a mesa deixaram-na como provavelmente deixam as palavras fugirem da boca, em péssimo estado… eram só três a jantar e pelas minhas contas deixaram loiça e guardanapos para mais vinte!
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A frase da noite não me saía da cabeça: “Ela é estúpida mas já percebeu…” .
Já no regresso a casa… com as luzes a piscar que iam aparecendo nas janelas, e os homens de vermelho e barbas branquinhas a subirem pelas varandas, andar sim, andar não… fiquei novamente sem vontade de Natal.
Desta noite de olhares espantados, apressados, e de mãos carregadinhas de sacos, provavelmente cheios de “porcarias nenhumas”… trouxe um aperto no peito que me acentua o pouco espírito da época.
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Evito a palavra, evito os embrulhos… gosto de dar, mas não gosto de receber assim, só porque estamos lá, na época!
Nesta altura em que todos resolvem “olhar” para todos, existem lugares vazios … e esses lugares partem-me o coração. Lugares pertença de quem já partiu, e lugares por nascer, de quem não chegou…

Vêm as perdas ao de cima… vem à flor da pele o toque que já não existe… e fica uma profunda indignação por perceber que estão muito mais presentes na vida das “Carlas” os pais natais que sobem os prédios altos, do que os que descem pelas chaminés…

*excerto de um texto muito maior que aqui não fazia sentido colar...

**há conversas, mesmo escritas, que nos fazem mudar de ideias... e então publiquei um pedaço do texto...


7 comentários:

Lady Godiva disse...

Estava boa a tua 'pasta'?

Jorge A. Roque disse...

"Nesta altura em que todos resolvem “olhar” para todos, existem lugares vazios … e esses lugares partem-me o coração. Lugares pertença de quem já partiu, e lugares por nascer, de quem não chegou…"

e

"fica uma profunda indignação por perceber que estão muito mais presentes na vida das “Carlas” os pais natais que sobem os prédios altos, do que os que descem pelas chaminés…"

Consegues, com estas duas passagens do teu belo texto, resumir o meu estado de alma e colocar em palavras o que sinto dificuldade em exprimir mesmo falando. Foi mais uma prenda, esta que acabei de receber. beijinho

p.s já estou como o outro, o pior professor do mundo nos Contemporâneos: "só me resta ir para a Áustria(!) caçar kangurus"

Jorge A. Roque disse...

Esse teu caderninho pode e deve falar ainda mais ;o)

Jorge A. Roque disse...

Correcção: estive a rever o episódio dos Contemporâneos que tem o quadro do "Pior docene do país". O que ele diz no final é "só me apetece ir para a Áustria dar aulas aos kangurus". assim é que é.

mdsol disse...

Poizé... eu debato-me sempre com uma angústia muito grande nesta época! O episódio que conta é sintomático...
:))

Clarice disse...

Lady, a pasta? estava mais atenta à Carla...

Jorge,que bom teres gostado, mas são os teus olhos...

Quanto aos Kangurus, caçar ou dar aulas passa a ser muito parecido "nesta selva"...

Bora lá para a Áustria, quando voltarmos já não há luzes por cá, e se houver por lá ... olha andamos de olhos fechados e metidos nas bolsas dos Kangurus, boa?:)

mdsol, poizé!

Anónimo disse...

Passei só para te deixar 1 beijinho, Clarice.

Adoro a tua escrita 'postada'... seja em prosa, em verso ou mesmo em imagem !! Mas, isso já tu sabias.