"E aqui anda a noite à roda e eu com ela como um papelinho com que o vento brinca, apanha-me, larga-me, empurra-me, corre, mais adiante, a prender-me nos dentes, esquece-se de mim, torna a lembrar-se, poisa-me uma pata em cima, vai-se embora. O vento. Em certas alturas, dantes, na casa velha dos meus pais, estremecia os caixilhos, na de Nelas batia um ramo contra a janela e eu deitado no escuro, com medo, enquanto o ramo falava sem cessar. Dizendo o quê? Nunca entendi o vento. "

"Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega."

Fiquei sem palavras... António Lobo Antunes à minha frente. Quando percebeu que o estava a fotografar, deitou-me a língua de fora e sorriu. Consentiu. Eu sorri... de alívio também! A tentação de fotografar rostos prega-me tantos sustos... mas compensa! Durante uns bons minutos fiquei a observar a forma como escutava quem lhe pedia um autógrafo. O seu olhar é de uma ternura imensa... faz cada vez mais sentido para mim a sua escrita... perco-me em cada frase, em cada pensamento seu ... vou-me encontrando assim ...
Escolhi uns pedacinhos de crónicas que acompanham cada fotografia de António Lobo Antunes. E agora, olho cada uma destas imagens como se olhasse um lugar que trago comigo, as palavras deste escritor fazem de mim uma outra pessoa...

"O meu avô dizia-me muitas vezes que um homem sem amigos não é nada. Pode ter tudo na vida, garantia ele, dinheiro, casas, mulheres, filhos, saúde (e continuava a lista) mas se não tiver amigos é um infeliz, um pobre de pedir. Eu olhava o meu avô sem acreditar porque as pessoas crescidas são tão ignorantes e com tanta falta de sentido das coisas essenciais: nunca conheci nenhuma, por exemplo, que juntasse, como eu fazia, pirilampos numa caixa de fósforos para o caso de não haver electricidade."

"E agora começa a anoitecer tão cedo. A minha mãe conta que quando era pequeno, três anos, quatro, cinco, sei lá, me tornava melancólico ao crespúsculo. Não me lembro nada disso mas é capaz de ser verdade porque o fim do dia sempre me trouxe, sei lá porquê, uma espécie de tristeza mansa, um desejo vago de coisas mais vagas ainda, uma inquietação doce, um estado de alma inpossível de exprimir, não inteiramente agradável, não inteiramente desagradável, estranho apenas, um (como dizer?) sorriso com uma lágrima tranquila dentro, percebem? Tão difícil traduzir as emoções em palavras, é tão pobre o vocabulário que temos e vou-me consumindo nos livros a procurar exprimir isto."

"De vez em quando faço umas revisões interiores e lembro-me mal dos anos que passaram: tenho a certeza que só esta manhã comecei a viver e nada sei do mundo, que sou demasiado recente, que o meu tempo não começou ainda. Reparo nas coisas espantado, sem as conhecer, e duvido sinceramente que me pertençam. Nem vejo a caneta que escreve:anda por aí a desenhar as letras e a cabeça flutua, cheia de nuvens, entre o tecto e a vidraça."

Admirar alguém de quem se gosta é a perfeita fotografia... que guardarei para sempre dentro de mim...