Domingo à noite numa grande superfície nos arredores de Lisboa … na esperança de sermos poucos… e de facto não éramos muitos, mas parecíamos milhares. As minhas escolhas eram muitas, a vontade de escolher é que era pouca, muito pouca. Ainda sem nenhum saco na mão resolvi parar para jantar.
Pasta ou salada? pasta. Tagliatelle mais cinco escolhas, e molho. Carbonara ou cinco queijos? Cinco queijos!
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Sentada numa mesa que se ligava a outras mil cheias de copos e pratos já usados e pessoas carregadas de sacos, dei a primeira garfada quando “ouvi” e depois olhei, a “expressiva” família que tinha como vizinha de mesa.
“Cala-te Carla, já te comprámos as prendas. Esta miúda é mesmo estúpida!”
“ Ó Paulo (diz, a que presumo ser a mãe da Carla… porque são do mesmo tamanho e largura, e porque têm o mesmo corte de cabelo e nuances da mesma cor… apesar de uma não ter mais que doze anos e a outra aparentar uns quarenta e tal…) não fales assim, ela é estúpida mas já percebeu que não vai ter mais porcarias nenhumas!”
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Depois desta entrada triunfante perdi a postura e acho que ao abrir a boca de espanto me babei… Compus-me, e confesso que atrasei propositadamente a minha refeição para ficar até ao final do jantar (quase de Natal) da família da Carla.
Levantaram-se, a mesa deixaram-na como provavelmente deixam as palavras fugirem da boca, em péssimo estado… eram só três a jantar e pelas minhas contas deixaram loiça e guardanapos para mais vinte!
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A frase da noite não me saía da cabeça: “Ela é estúpida mas já percebeu…” .
Já no regresso a casa… com as luzes a piscar que iam aparecendo nas janelas, e os homens de vermelho e barbas branquinhas a subirem pelas varandas, andar sim, andar não… fiquei novamente sem vontade de Natal.
Desta noite de olhares espantados, apressados, e de mãos carregadinhas de sacos, provavelmente cheios de “porcarias nenhumas”… trouxe um aperto no peito que me acentua o pouco espírito da época.
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Evito a palavra, evito os embrulhos… gosto de dar, mas não gosto de receber assim, só porque estamos lá, na época!
Nesta altura em que todos resolvem “olhar” para todos, existem lugares vazios … e esses lugares partem-me o coração. Lugares pertença de quem já partiu, e lugares por nascer, de quem não chegou…
Vêm as perdas ao de cima… vem à flor da pele o toque que já não existe… e fica uma profunda indignação por perceber que estão muito mais presentes na vida das “Carlas” os pais natais que sobem os prédios altos, do que os que descem pelas chaminés…
*excerto de um texto muito maior que aqui não fazia sentido colar...
**há conversas, mesmo escritas, que nos fazem mudar de ideias... e então publiquei um pedaço do texto...