Ninguém gosta de ficar internado. Ou se está doente, ou para lá se caminha, e mesmo quando os filhos vão nascer é uma viagem com desejo rápido de regresso a casa. Mas se tem que ser, e foi o caso, assim seja. Por uma noite. Só uma noite. Não me deu o sono até me pedirem que engolisse de uma só vez dois comprimidos. Fique descansada, são só para ficar meia sonolenta. Comecei logo a pensar: mau...agora vão fazer-me perguntas e eu no embalo ainda respondo segredos meus. Engoli. Seja o que deus quiser. O resultado esperado aconteceu, fiquei sonolenta. Foi então que prometi descansar, e ler até subir para o bloco operatório. Dá-me licença, vai ter aqui uma companhia ao seu lado, diz a enfermeira ao entrar no quarto com um sorriso nos lábios. Olhei, vi uma senhora pousar no chão a sua mala azul de cadeado brilhante, o que me levou logo a crer ser uma mulher prevenida. E pensar eu que devia ter arranjado um cadeado para a minha pequena mochila... Não está com cara de doente?! Não, não, é coisa sem grande importância. Vimos as duas para o mesmo então, diz a minha companheira de quarto. "Companheira de quarto" é uma expressão tão militar, nunca fui à tropa mas sinto-a assim. Pois, disse eu. É a vida, diz a D. Fernanda. Mulher de cabelo vermelho, grande porte, voz clara e com tom bastante audível. A minha filha é que devia estar aqui, mas desteta hospitais. Foi desde o pai, mas eu digo-lhe: Carla tens que ultrapassar isso na tua ideia. A minha Sandra é diferente, essa vai logo onde tem que ir. E tem que ser assim, não acha? sim, sim, claro. Sentada na minha cama, marco o livro com os meus óculos e fico a olhar para esta mulher que fala enquanto olha pelo vidro e deixa o cotovelo entregue ao parapeito da janela. O pai era muito amigo delas, continua... e bom homem que era. Trabalhou a vida inteira atrás de um balcão. O patrão até dizia que ele não era um empregado, ele era um filho da casa! Coitadinho, sofreu dois meses e depois olhe...ficamos cá nós. Quando me pediu em casamento é que foi, o que ele afinou com o meu pai: "então você é o tal rapaz que trabalha no rei das peúgas?" O que ele foi dizer ao meu marido, uma vida a trabalhar no rei das meias, um orgulho para ele e para nós(risos). E o avô que ele era... as netas adoram-no. O que me salva é o trabalho, são as minhas colegas e as netas e isso... A D.Fernanda foi falando, eu fui ouvindo , o seu olhar parava lá fora quando falava do marido que perdeu há dois anos, mas que toda a vida se lembra estar a seu lado. As netas, as colegas do seu trabalho, até do genro da filha mais nova... ainda sorrimos as duas, ainda lhe disse algumas das minhas parvoíces. Voltamos a sorrir. Quando voltei ao quarto a D. Fernanda já tinha saído. Não lhe desejei as melhoras e a ultima vez que nos cruzamos foi quando eu saí do bloco operatório e ensonada lhe desejei boa sorte. Gostei tanto de conhecer a D.Fernanda! Foi só uma noite, coisa sem importância.